Em busca de santos, a “bem-sucedida” forma de humanidade

Por Giancarlo La Vella – Vatican News – 31/05/2021
Os dicastérios da Santa Sé contados por dentro: história, objetivos e “balanço de missão”, como funcionam as estruturas que apoiam o ministério do Papa. A Congregação para as Causas dos Santos na entrevista com o Prefeito, Cardeal Marcello Semeraro

Há infinitas maneiras de definir a santidade. Uma delas é considerá-la um modelo, de fato “o” modelo, da beleza de uma criatura humana. É isso que o dicastério do Vaticano responsável pelo exame minucioso da vida dos candidatos aos altares vem fazendo desde 1969, ano de seu nascimento: procurar as características do Evangelho em suas características, para que todo cristão possa vê-los como testemunhas credíveis e, sobretudo, imitáveis. Por trás da proclamação de um santo há um esforço coletivo escrupuloso, que dura anos, às vezes décadas, e requer a intervenção de várias habilidades e muitos custos (o orçamento de 2021 do dicastério é de cerca de 2 milhões de euros). A “fábrica dos santos” é uma expressão que “também pode ser simpática, se entendida no sentido positivo, isto é, como um lugar onde se trabalha muito para chegar à apresentação séria e honesta de pessoas dignas” do título, observa o Prefeito da Congregação, Cardeal Marcello Semeraro, que explica como funciona a estrutura.

A santidade é um chamado que o Senhor dirige pessoalmente a “todos os fiéis seja qual for sua condição ou estado” (Lumen Gentium), mas desde o início a Igreja sente a necessidade de reconhecer testemunhas exemplares e de aceitar “oficialmente” sua fidelidade à mensagem evangélica. Que papel a Congregação para as Causas dos Santos desempenha a este respeito?

Como nos recordou o Concílio Vaticano II, a santidade é certamente uma vocação universal, para cada um e para todos. Quanto ao reconhecimento oficial da santidade de um cristão individual, pode-se dizer que se trata de uma tradição antiga. Desde os primeiros tempos, de fato, quando se espalhava a notícia de algum mártir, ou de alguém que tinha vivido o Evangelho de forma exemplar, eles eram propostos como modelos de vida para todo o povo e como intercessores junto a Deus nas necessidades dos crentes. Para declarar a santidade de uma pessoa, os procedimentos e normas canônicas variam, mas o núcleo fundamental é este: a Igreja sempre acreditou na possibilidade de santidade de seus membros e que eles deveriam ser conhecidos e propostos para veneração pública.

Quanto à Congregação para as Causas dos Santos, ela segue o processo de beatificação e canonização dos Servos de Deus, auxiliando os bispos na investigação sobre o martírio ou virtudes heroicas ou senão a oferta da vida e milagres de um fiel católico que em vida, na morte e após a morte gozou da reputação de santidade, ou de martírio, ou de oferta de sua vida. É chamado Servo de Deus o fiel católico cuja causa de beatificação e canonização foi iniciada e para o qual, em qualquer caso, é sempre necessária uma autêntica, difusa e duradoura “fama de santidade”, ou seja, a opinião comum de que sua vida foi íntegra, rica em virtudes cristãs e fecunda para a comunidade cristã.

Livro antigo dos Arquivos da Congregação

Livro antigo dos Arquivos da Congregação

A atividade do seu dicastério comporta um verdadeiro “trabalho de equipe” no qual estão envolvidos postuladores, testemunhas, consultores, teólogos, estudiosos, médicos, cardeais e bispos. Quantas pessoas são envolvidas e como se articula o trabalho da Congregação em suas diversas fases?

As novas normas para as Causas dos Santos, introduzidas em 1983, reduziram em muito o tempo necessário para os processos de beatificação e canonização. Basta pensar, por exemplo, que no passado, para iniciar o estudo da vida, virtudes ou martírio de um Servo de Deus, era preciso esperar cinquenta anos após a sua morte. Hoje, não é mais assim. A duração das Causas, entretanto, depende de muitos fatores: alguns são intrínsecos às próprias Causas (complexidade da figura dos candidatos, ou do período histórico em que viveram), outros externos (como a disposição, preparação e a disponibilidade das pessoas que devem trabalhar nelas: postuladores, colaboradores externos, testemunhas, etc.).

Cada causa tem seus próprios números: as testemunhas ouvidas na fase diocesana podem ser muitas dezenas, assim como os outros que intervieram e especialistas. Cada processo de beatificação e canonização também tem seu próprio cronograma: os das investigações, da escuta das testemunhas, da redação dos Positiones, do exame pelos consultores teológicos e, segundo a causa, pelos consultores históricos. Também devem ser considerados os tempos dos especialistas médicos quando se trata de examinar um possível milagre de cura. Tudo isto, se estas passagens forem positivas, passa para a sessão ordinária dos membros da Congregação, ou seja, dos cardeais e bispos. Uma vez terminado todo este processo, a palavra final vai para o Papa, a cuja aprovação o Prefeito da Congregação submete as diversas causas. Elas são realmente muitas (no momento, as que temos em curso, na fase romana são quase mil e quinhentas, enquanto que as causas na fase diocesana são mais de seiscentas) e o próprio fato de que nem todas conseguem ir adiante no procedimento demonstra a seriedade dos procedimentos. Porém isso não quer dizer que os que não são propostos para a veneração dos fiéis não sejam figuras exemplares pelo seu testemunho de vida.

O grande número de canonizações e beatificações promovidas pela Congregação é um indicador da vitalidade da Igreja, em cada época. Em média, em quantas causas vocês trabalham e quantas são concluídas a cada ano?

O balanço destas últimas cinco décadas de atividade da Congregação não só é positivo, mas surpreendente. A racionalização dos procedimentos tornou possível aumentar o número de pessoas propostas para a veneração dos fiéis: elas são provenientes de todos os continentes e pertencem a todas as categorias do povo de Deus.

O balanço espiritual e pastoral destes cinquenta anos desde a instituição da Congregação para as Causas dos Santos (1969) é singular: até 2020 o número total é de 3003 beatificações e 1479 canonizações. Anualmente, havendo normalmente duas sessões ordinárias por mês e em cada uma delas o exame de quatro causas, o número aproximado das que são concluídas em um ano é de 80-90. Para estes e outros dados, pode-se visitar o site da Congregação (www.causesanti.va), que oferece de forma ágil e completa todas as informações sobre a Congregação e sobre o caminho para a santidade. Atualmente, além dos principais documentos e publicações, o site contém mais de mil arquivos sobre os beatos e santos dos últimos sete pontificados, enriquecidos com fotos, citações, biografias, homilias, links externos e material multimídia.

Balanço de missão

Balanço de missão

Muitas vezes, vistos de fora, a mesma vitalidade que eleva aos altares modelos de vida cristã é rotulada de “a fábrica de santos”. Como se pode explicar brevemente a linha de rigor seguida em relação a um candidato à beatificação e canonização?

A expressão pode ser agradável, se entendida no sentido positivo, isto é, como um lugar onde muito trabalho é feito para chegar à apresentação séria e honesta de pessoas dignas de serem propostas como modelos de santidade. Embora o número de candidatos seja considerável, é importante acrescentar que o trabalho não se faz à custa da precisão, profundidade e autoridade.

Partindo da “fama de santidade e de sinais” entre o povo de Deus, a investigação tem uma primeira fase na diocese (abertura do processo, coleta de testemunhos e de documentos, criação de um tribunal com especialistas em teologia e história). Uma vez trazido a Roma, a causa é designada a um relator que orientará o postulador na preparação do dossiê onde estão sintetizadas as provas reunidas na diocese a fim de reconstruir com segurança a vida, e de demonstrar as virtudes ou o martírio assim como a relativa fama de santidade e dos sinais dos quais goza o Servo de Deus. Esta é a Positio, que é então estudada por um grupo de Teólogos e, no caso de uma “Causa antiga” (ou seja, relativa a um candidato que viveu há muito tempo e para quem não há testemunhas oculares), também por uma comissão de Historiadores. Se estes votos forem favoráveis, o dossiê será submetido a um novo julgamento por parte dos Cardeais e Bispos da Congregação. Se, no final, isto também for favorável, o Santo Padre pode autorizar a promulgação do Decreto sobre a heroicidade das virtudes ou sobre o martírio ou senão sobre a oferta da vida do Servo de Deus, que assim se torna venerável: é-lhe reconhecido como tendo exercido em grau “heróico” as virtudes cristãs (teologais: fé, esperança e caridade; cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança; outros: pobreza, castidade, obediência, humildade, etc.), ou de ter sofrido um autêntico martírio, ou tendo oferecido sua vida de acordo com as regras da Congregação), ou ter sofrido um autêntico martírio, ou ter oferecido a própria vida de acordo com os requisitos previstos pelos Dicastério.

A beatificação é a etapa intermediária em vista da canonização. Se o candidato for declarado mártir, ele se torna imediatamente um Beato, caso contrário é necessário que seja reconhecido um milagre devido à sua intercessão. Geralmente, este evento milagroso é uma cura considerada cientificamente inexplicável, julgada como tal por uma Comissão médica composta por especialistas, tanto crentes como não crentes. Também se pronunciam sobre o milagre primeiro os consultores teólogos depois os Cardeais e Bispos da Congregação e o Santo Padre autoriza o relativo decreto. Para que a canonização ocorra, ou seja, para que ele seja declarado santo, deve ser atribuída ao Beato a intercessão eficaz de um segundo milagre, que ocorreu após a beatificação.

Mais do que uma “fábrica” que produz santos em um fluxo contínuo, a Congregação é, então, o Dicastério da Cúria Romana que com séculos de experiência se especializou em reconhecê-los e que com grande diligência, habilidade e rigor científico realiza um processo que verifica se um fiel viveu uma vida de grande santidade, de modo a ser proposto como um modelo para a Igreja universal.

Congregação para as Causas dos Santos, arquivos

Congregação para as Causas dos Santos, arquivos

Na exortação apostólica “Gaudete et exsultate”, o Papa fala da “classe média da santidade”. Como esses “santos da porta ao lado” podem ser reconhecidos e oferecidos como exemplo para a comunidade dos crentes?

Gaudete et exsultate é um belo manifesto sobre o chamado à santidade no mundo de hoje, porque os santos são as testemunhas da possibilidade de viver o Evangelho; não somente os já beatificados ou canonizados, mas também os que o próprio Papa chama de “os santos da porta ao lado” que vivem perto de nós e “são um reflexo da presença de Deus”: “pais que criam seus filhos com tanto amor, homens e mulheres que trabalham para levar pão para casa, religiosas idosas que continuam a sorrir” (n. 7) em um mundo que já não sabe mais esperar e é indiferente diante do sofrimento dos outros.

O teste da santidade da Igreja é precisamente a vida cotidiana feita de pequenos gestos. A santidade da “porta ao lado” é aquela que vivem todos os dias os cristãos que, em todas as partes do mundo, testemunham o amor de Jesus com o risco de suas próprias vidas e sem nunca levar em conta seus próprios interesses particulares.

Nos santos, se realiza a mais bela e bem-sucedida forma de humanidade. Na Exortação Gaudete et Exsultate, o Papa escreveu que a santidade mostra a “face mais bela da Igreja” (n. 9). Podemos também dizer que, nas últimas décadas, a veneração dos santos voltou à vanguarda na vida da Igreja, que reconhece a necessidade de seu testemunho para a comunidade crente. A “contemporaneidade” de um santo, de fato, não é tanto dada pela proximidade cronológica – mesmo que as causas concluídas ou em andamento de nossos beatos e santos contemporâneos sejam muitas – mas por ser uma figura completa, rica de paixão humana e cristã, no desejo do sobrenatural, na fome de justiça, no amor a Deus e na solidariedade a cada irmão.

Com as novas normas introduzidas em 2016, Francisco recomendou vigilância na administração dos bens e na contenção das despesas das causas.  Existe também um “fundo de solidariedade” para os casos em que haja dificuldades em sustentar os custos. Como as indicações do Pontífice foram recebidas e implementadas no seu balanço de missão?

A causa de beatificação é um trabalho complexo e articulado em vários aspectos. Como tal, envolve um certo custo devido ao trabalho das comissões, a impressão dos documentos, as reuniões dos especialistas (historiadores e teólogos encarregados do estudo da documentação ou médicos com relação aos milagres). O Dicastério está sempre atento à contenção de gastos, para que a questão econômica não seja um obstáculo para a continuação das Causas. Portanto, as normas administrativas aprovadas pelo Santo Padre em 2016 que garantem transparência e regularidade administrativa caminham neste sentido. Também foi criado nosso “Fundo de Solidariedade” na Congregação para as Causas destinado aos que têm menos recursos. Atualmente estamos estudando outras formas de apoio para estes casos.

Na sociedade “líquida” teorizada por Bauman, a santidade aparece cada vez mais como uma escolha contracorrente. Quais são os novos desafios que a Congregação é chamada a enfrentar a fim de repropor ao mundo o fascínio da radicalidade evangélica?

Vivemos nesta “sociedade líquida”, conscientes das oportunidades, mas também dos riscos. A Igreja não é nova nessas armadilhas para a fé e a credibilidade cristã. Já no século II, os cristãos se opunham à fé em Jesus, o Messias; a mesma objeção que, como relata São Justino em seu Diálogo com Trifão, já estava surgindo durante a sua vida pública. “Mas como é possível que o Messias já tenha vindo se nada mudou, se a paz não veio, se Israel ainda é escravo dos romanos, se o mundo ainda é como era antes”? Os cristãos responderam: “É verdade, sim, muitas coisas são como antes, não mudaram, mas, se você quer realmente olhar bem a realidade, você também pode observar novidades maravilhosas e extraordinárias, como, por exemplo, a fraternidade entre os cristãos, a comunhão de bens, a fé, a coragem nas perseguições, a alegria nas tribulações. Pode-se ver coisas maravilhosas. O Reino de Deus, é claro, ainda não chegou em sua plenitude definitiva, chegou como em um germe, em uma semente, mas chegou com seriedade e está crescendo, está se desenvolvendo no meio das comunidades cristãs”. Os santos são precisamente as sementes amadurecidas que dão muitos frutos, de acordo com a parábola do Evangelho.

A santidade é sempre a mesma, fundamentalmente, mas é sempre nova em suas figuras concretas, como recordou o Concílio Vaticano II (Lumen Gentium, 41); assume diferentes aspectos nos mártires, nas virgens consagradas, nos eremitas, nos monges, nos pastores da Igreja, nos príncipes das nações, nas ordens mendicantes, nos missionários, nos contemplativos, nos educadores, nos santos da caridade social. Basta olhar a lista e as figuras dos santos destes últimos cinquenta anos – desde que a Congregação para as Causas dos Santos foi criada – para ver o quanto as sementes do Concílio que apontavam para a santidade como vocação universal, e não o privilégio de uns poucos escolhidos, germinaram e amadureceram. A única santidade, que é reflexo da de Cristo, imprime em cada um uma marca irrepetível e pessoal; assim como é o amor: único e muito pessoal.

Quanto aos desafios, os da Congregação são os mesmos que os da Igreja e sua presença no mundo. A Igreja é uma fonte de credibilidade tanto para a santidade objetiva da fé, dos sacramentos, dos carismas, quanto para a santidade subjetiva dos cristãos. É o que professa o artigo do Símbolo Apostólico: “Creio … na comunhão dos santos”, que significa a comunhão dos bens santos e dos homens santos. Todo santo é pelo crescimento e unidade de todo o corpo da Igreja; todo santo está consciente de que sua tarefa é uma missão da Igreja. Os santos são figuras completas, vivem da paixão humana e cristã, do desejo pelo sobrenatural, mas também da fome e da sede de justiça, do amor a Deus e da solidariedade para com cada irmão. O povo cristão intuitivamente percebe a credibilidade da fé em Jesus Cristo, referindo-se tanto à sua história biográfica como à sua presença contínua na Igreja, especialmente nos santos.